quarta-feira, 27 de julho de 2011

Recortes do cotidiano (micro contos)


(Barbeia)

  • Olha que negócio feio da porra! A mulher com as pernas cabeludas!
  • Mas isso é da natureza dos mamíferos. Pelos são normais. A natureza, meu caro, é irascível.
  • Pô, mas uma giletinha custa uns dois reais. E vai dizer que você não gosta de uma perna lisinha....
  • É, gosto, sim.
  • Então “inrascível” é meu pau cheio de pentelho preto, certo?
  • Pentelho preto? Porra, bicho, uma giletinha custa uns dois reais.


(Sem palavras)

  • Nhã, nhã, dan, dan, dan...
  • Sai daqui mudo filho-da-puta.
  • Dan, dan, dan, ah, ah, ah...
  • Eita mudo chato do caralho. Sai daqui, porra, vai se foder que vou pegar meu ônibus.
(o mudo escreveu numa placa para eu ler, assim: sou mudo, não surdo. escutei tudo. queria devolver os R$50 que caiu do bolso dele).


(Smells like teen spirits)

  • Quanto você tem aí?
  • Não tenho dinheiro, não.
  • Tens um perfume cheiroso? Uma alfazema?
  • Não. Mas tenho um desodorante de sovaco.
  • Puta merda! Mas vamos mesmo assim, pois gostei de ti. E pelo menos meu sovaco ficará cheirosinho.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Serpente (poesia)


Ela me serpenteou - sem intenção de querer fazê-lo -
E laçou cordas em volta do meu pescoço
Que se apertavam cada vez mais e mais
Mas não era um arrocho pegajoso
Tinha um quê de gostoso
De verdadeiro


Tal qual cascavel que exsuda veneno
Ou jiboia que encanta com seu olhar e sua voz sibilante
Ela me envenenou e me hipnotizou
E me fez uma jura estranha. Assim:
me terás somente hoje, como se ela fosse de éter que entorpece depois evanesce
Ó “vaca profana das divinas tetas”:
Ejetais na cara dos que nada sabem das mulheres
O significado ardido e espinhoso de se querer ter e não poder se desfrutar


Querer ter e não poder é cruel
Derrama-se saliva pelos cantos da boca
E balbucia-se palavras peremptórias de um afã
De um afã que sai arfado
Querendo, mas não conseguindo, explodir num grito, assim:
VOCÊ É MINHA
Mas nada é do que jeito que a gente quer
E você, Serpente, decididamente não és minha
Nem estais na minha
Nem és de ninguém – como na “Quadrilha” do Drummond

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Sono poético (poesia)



Com sono a gente não escreve poemas. A gente debulha uma mixaria aqui e outra acolá.


Com sono não há soneto. Nem pensar. Fazer soneto já é de uma complexidade enquanto sóbrio
- imagine-se bêbado por Morfeu -


    Se tens fértil mente pensante, ó Olavo Bilac fake, mestre da prosódia ridícula e da rima fácil e burlesca, guarde seus versos para si mesmo
    Só imagino um homem (já morto) fazendo sonetos à antiga
    Com a desenvoltura não-piegas
    Que lemos em As Horas de Katharina


Sono é sonar de improbabilidades poéticas
Favor escrevais vossos poemas lúcido quiça translúcido
Mas nunca de porre ou com os olhos por fechar
Poupem-nos da vergonha alheia de criticar um verso em público
E se dizer: isso é obra do impaupério artístico causado pela ausência de boa dormida


Tolentino bebia e cheirava cocaína (isso é fato)
Mas acredito que ele concebia seus elegantes sonetos
Sempre depois de um bom banho tomado e as energias revigoradas
Afinal uma mente ébria não comporia algo como:
“... é nesse encontro entre a paleta e a partitura
que uma cidade existe tal qual imaginei-a” (Bruno Tolentino, 2006, em A Imitação do Amanhecer)

terça-feira, 5 de julho de 2011

A mulher do outro (poesia)


Ela não tinha um rosto excepcionalmente lindo
Nem seios estupendos
Nem pernas grossas
Nem bunda grande e firme
Nem era alta
Magra
Gorda
Ela não tinha nada fisicamente demais que justificasse o que eu sentia por ela


Lascívia despudorada
Despudor orgasmático
Orgasmos de porra viscosa
A porra que de mim verte e que a imagino toda na boca dela
Tudo isso por nada
Nada


Um fundo de razão haveria de existir
Para que meus sentimentos, vis que fossem, pudessem se justificar
E eis que achei uma causa Machadiana: inveja
Ela era dele e não minha
E aquela cara de safada que ela, disfarçadamente, fazia para mim
- eu imaginava isso -
Entregava o verdadeiro motivo pelo qual eu pensava tudo aquilo dela:
“Tá na hora de você arranjar uma mulher para si”, reverberava meu inconsciente