segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cicatriz (conto)


Depois de seis anos de namoro, de muitos ramalhetes de rosas e outras flores tão graciosas quanto, depois de muitos salamaleques, gentilezas, abre-portas e uma educação que todos elogiavam, João resolveu pedir-me em casamento.

Que nobre esse homem, pensei. Nem um dedo sequer ele passou por minha bucetinha enquanto éramos enamorados, quiçá ele tivesse afagado vez ou outra meus pentelhos de veludo. Mas foi só. Ele era um gentleman. O máximo de perversão que nos permitíamos era uma sugada nos meus peitos, uma apalpada no pau duro que ele exibia por baixo dos grossos panos de sua calça e ceroula. Mas eram chupadas e quase-punhetas todas muito respeitosas.

Só não conseguia entender como João, na flor da idade sexual, conseguiu ficar seis anos sem sexo. Será que aquele veado se utilizava de subterfúgios com putas ou outras meninas que não eu? Prefiro pensar que não. Se à mulher não é dada a faculdade de se portar como uma cachorra, uma porca ou uma piranha, aos homens também não deveria ser permitida uma buceta ordinária e vadia à espera de seus membros.

Bem, voltando às qualidades de João: ele me escrevia um sonetinho, um acróstico ou uma musiquinha todos os dias. E eu chorava com a sua habilidade literária tão paupérrima, quanto infantil. Mas eu me derretia toda com aqueles versos bobos like me. Meu coração se aquecia e minhas mãos gelavam quando eu lia isso:

... quando eu te vejo, sinto que morrerei
Por não te ter perto todos os dias
Juro que escreverei como se eu fosse um Rei
Odes para sua beleza que um dia para todo o sempre a terei.

Seis anos agüentando isso e o derradeiro pedido de casamento. Aceito, obviamente. Desperdiçar uma boa chance de ascender socialmente de um modo fácil desses seria muita burrice. A fórmula da felicidade eterna é: ficar calada, abrir a boca quando me for dada a oportunidade, nunca propor que ele coma meu cu e nada falar sobre suas amantes, bebedeiras e noitadas de jogatina.

Dia do casamento e eu estava louca de vontade de saber como era trepar. As comadres e tias velhas pareciam mais excitadas que eu quando me contavam de suas noites de núpcias, geralmente culminadas em uma ejaculação precoce e aquela sensação de “é só isso?”. Pompa, glaumour, chuva de arroz, carro decorado com coraçõezinhos e rumamos para nossa tão sonhada viagem. Estávamos mais enamorados que nunca. Chegamos ao hotel à noite e vi João se transfigurar. Ríspido e seco, nem parecia o cavalheiro dos poemas blasés que se me oferecia. Tão canalha quanto brutal ele enfiou o pau em mim, rompendo meu fio de moral que estava preso ao meu hímen por pura convenção católica. Não vi encanto nem prazer na foda em si. Decepcionei-me, mas calada fiquei. Regrinhas para mulheres. Mas ver a cara de alívio de João depois de meter fraquinho quatro ou cinco vezes e anunciar que gozou foi algo meio decepcionante. Sempre pensei em fodas homéricas, com direito a refastelar-me com a boca no cacete de João e ele encharcando-se com o molhado que exsudava da minha buceta. Mas que nada. Tive que ficar imaginando como seria o tal do orgasmo que, adiantando minha vida sexual, nunca tive.

Perguntei se João não me escreveria um poema. Ele respondeu brutalmente assim: “porra de poema. agora somos casados”. Ao que respondi: “e estar casado é deixar morrer o encanto que cultivamos por seis anos?”. Ódio e rancor no rosto dele. E a resposta que ele me dera foi tão crua quanto dilacerante: a taça onde ele bebia um Porto tão seco quanto um pedaço de cortiça voou direto em meu rosto. Minha cara molhada daquele tinto estava levemente cortada. A taça espatifara-se logo abaixo do meu olho. Não contente João catou um caco que estava no chão e golpeou minha bochecha. Abriu-se um talho gigante por onde um riacho desceu inundando minha boca com um gosto rubro de sangue. Tudo isso acompanhado por gritos de:

“cala a boca, puta do caralho”
“abriu a boca para falar merda vai levar no cu da próxima vez”

Passei o resto da minha vida com João. Parecia uma aberração. Com uma cicatriz no rosto e um gosto eterno de revidar essa porra que ele me fez. Mas calada fiquei e no hospital aquela velha desculpinha de que tomei um tombo e cortei meu rosto em um lugar qualquer. Sou uma mulher pior, diminuída, humilhada sometimes. Carrego no rosto o estigma horroroso de um casamento falido e afundado em aparências como esse que possuo em mim. Sou uma mulher para o bel prazer de João que força sexo comigo quando ele não se deleita com suas putinhas.

Não mais posso viver com esse carma. Au revoir. Peguei no revólver e finalmente experimentei a sensação do fellatio. Pena que por poucos segundos. Até o momento em que puxei o gatilho e bum.

Um comentário:

  1. Me vi personagem desse conto, com algumas diferenças, claro! Minha cicatriz foi interna, que se esconde atras de um sorriso meu.

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